terça-feira, 14 de outubro de 2008

Tatuei Caio F. em mim


De todos aqueles dias seguintes, só guardei três gostos na boca - de vodca, de lágrima e de café. O de vodca, sem água nem limão ou suco de laranja, vodca pura, transparente, meio viscosa, durante as noites em que chegava em casa e, sem Ana, sentava no sofá para beber no último copo de cristal que sobrara de uma briga. O gosto de lágrima chegava nas madrugadas, quando conseguia me arrastar da sala para o quarto e me jogava na cama grande, sem Ana, cujos lençóis não troquei durante muito tempo porque ainda guardavam o cheiro dela, e então me batia e gemia arranhando as paredes com as unhas, abraçava os traveseiros como se fossem o corpo dela, e chorava e chorava e chorava até dormir sonos de pedra sem sonhos. O gosto de café sem açúcar acompanhava manhãs de ressaca e tardes na agência, entre textos de publicidade e sustos a cada vez que o telefone tocava. Porque no meio dos restos dos gostos de vodca, lágrima e café, entre as pontadas na cabeça, o nojo na boca do estômago e os olhos inchados, principalmente às sextas-feiras, pouco antes de desabarem sobre mim aqueles sábados e domingos nunca mais com Ana, vinha a certeza de que, de repente, bem normal, alguém diria telefone-pra-você e do outro lado da linha aquela voz conhecida diria sinto-falta-quero-voltar. Isso nunca aconteceu.

- Caio Fernando Abreu em Sem Ana, Blues de Os Dragões não conhecem o paraíso.

quinta-feira, 9 de outubro de 2008

Dinâmica dos fluidos

"Somos todos partículas. Átomos. Elementos químicos células, pessoas. Nos locomovemos. É isso que as partículas fazem. São atraídas e repelidas. O ar vai do quente para o frio. As cargas elétricas, do positivo para o negativo. Os planetas se atraem. E nós, indivíduos, para onde vamos?

Temos o livre-arbítrio. Vamos para onde queremos. O que torna nossos fluxos bem mais complexos de se organizar. O modelo matemático do trânsito é o mesmo da dinâmica dos fluidos. Da água correndo pelos canos. Cada cano como se fosse uma molécula d'água. O espaço entre eles é a pressão. Poucos canos, pouca pressão, o trânsito flui bem. Se a água é represada: muitos canos, pouco espaço entre eles, maior pressão. Só que a cidade não é só um cano ; é um emaranhado de canos, com água correndo para diferentes direções"

(texto sobre o trânsito de São Paulo narrado pela personagem Ênio (Leonardo Medeiros), no filme brasileiro "Não por acaso".