terça-feira, 14 de outubro de 2008

Tatuei Caio F. em mim


De todos aqueles dias seguintes, só guardei três gostos na boca - de vodca, de lágrima e de café. O de vodca, sem água nem limão ou suco de laranja, vodca pura, transparente, meio viscosa, durante as noites em que chegava em casa e, sem Ana, sentava no sofá para beber no último copo de cristal que sobrara de uma briga. O gosto de lágrima chegava nas madrugadas, quando conseguia me arrastar da sala para o quarto e me jogava na cama grande, sem Ana, cujos lençóis não troquei durante muito tempo porque ainda guardavam o cheiro dela, e então me batia e gemia arranhando as paredes com as unhas, abraçava os traveseiros como se fossem o corpo dela, e chorava e chorava e chorava até dormir sonos de pedra sem sonhos. O gosto de café sem açúcar acompanhava manhãs de ressaca e tardes na agência, entre textos de publicidade e sustos a cada vez que o telefone tocava. Porque no meio dos restos dos gostos de vodca, lágrima e café, entre as pontadas na cabeça, o nojo na boca do estômago e os olhos inchados, principalmente às sextas-feiras, pouco antes de desabarem sobre mim aqueles sábados e domingos nunca mais com Ana, vinha a certeza de que, de repente, bem normal, alguém diria telefone-pra-você e do outro lado da linha aquela voz conhecida diria sinto-falta-quero-voltar. Isso nunca aconteceu.

- Caio Fernando Abreu em Sem Ana, Blues de Os Dragões não conhecem o paraíso.

3 comentários:

Anônimo disse...

Só não tenho o gosto da vodka na boca, mas de resto, tenho lágrimas e café. Lágrimas que vêm de forma a me prostrar e café que me tira desse torpor e me faz reconsiderar abrir os olhos.
A vida é montanha-russa, Teca, uma São Paulo de ladeiras, e não há pés que não se calejem ao encará-las.
Sonha teus sonhos, ama teus amores, e bebe da tua vivacidade. E quando triste, encara teus olhos no espelho e vê o quão perfeita és, minha doce Tereza.
Da sua sempre amiga,
Larissa.

Tereza Maciel disse...

Vivacidade. Essa palavra me alegra e me confunde, Lali. Muitas vezes.

Eu amo a tua presença na minha vida, mesmo longe geograficamente.

Malu Mota disse...

Já tinha lido algumas coisas de Caio Fernando, mas este texto era ainda inédito para mim. Li o texto inteiro e ainda estou "a metros do chão".
Melancolicamente visceral.